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Gisela Eichbaum

Como pesquisador e curador, estou há mais de dez anos muito próximo dos desenhos e pinturas de Gisela Eichbaum. Isso tem representado uma descoberta contínua, que consolida a certeza de conviver com a obra de uma artista dedicada integralmente ao seu ofício. Gisela buscou e alcançou absoluta coerência em seus mais de cinquenta anos de trajetória artística. O início figurativo de sua empreitada carregava certa dose de expressionismo, naquele momento corrente importantíssima na sua Alemanha natal. Marcando em definitivo sua história como artista, tal influência foi compartilhada no Brasil com artistas como Lasar Segall, Karl Plattner e, de maneira particular, Yolanda Mohalyi. Nos anos 1940-1950 Gisela e Yolanda, que tinham afinidades estéticas, aproximaram-se, tornando-se grandes amigas. Yolanda mantinha em seu ateliê paulistano grande movimento de alunos e amigos-artistas. 

 

A troca de informações e experiências era intensa e contínua. Ali, Gisela já se revelou aquarelista de talento. Yolanda muitas vezes incentivava seus alunos a pintarem os mesmos temas sugeridos ou também pintados por ela. Vários dos modelos que posavam no ateliê foram pintados por Yolanda, Gisela e, aparentemente, por outros alunos- artistas presentes – numa experiência compartilhada de grande interesse. Se pudessem ser confrontadas, tais obras apresentariam, quer pela similaridade dos temas, quer pelas diferenças pessoais de traços dos artistas, um laboratório com resultados múltiplos e enriquecedores. Muitas das aquarelas de Gisela pintadas nesse período possuem datas completas (dia-mês-ano), o que parece revelar – segundo informações de alunos e amigos de Yolanda e Gisela na época, como, por exemplo, a pintora e fotógrafa Alice Brill em depoimento que me foi feito há alguns anos – que a obra foi pintada num único dia, anotado no papel. A quantidade e a qualidade dos trabalhos produzidos nessas experiências coletivas impressionam e mostram bem a evolução de Gisela Eichbaum em seu afã de conseguir cores e veladuras cada vez mais diáfanas, objetivo maior da aquarela. Também são deste período as poucas telas pintadas pela artista, que se sentia mais à vontade executando suas obras sobre papel, suporte que foi marca indelével de todo seu percurso como artista. Na década de 1960 e no caminho certeiro da conquista da abstração, Gisela sofreu o impacto da sua rápida passagem pelo Atelier Abstração de São Paulo, importante movimento fundado pelo romeno de formação francesa Samson Flexor. As paisagens urbanas e as figuras alongadas, estáticas e misteriosas pintadas na década anterior começaram, pouco a pouco, a se esfacelar. Os trabalhos da artista iniciaram nova, intensa e definitiva fase, revelando a partir de então uma artista de amplo e requintado colorismo. Aliados ao traço nunca abandonado (que consagraria seu desenho, premiado nos anos 1980), tais trabalhos abriram caminho para a abolição definitiva da figura, objetivo buscado com disciplina e persistência e alcançado pela artista em realizações exemplares. Os anos 1970-1980 consolidaram sua técnica de pintura muito pessoal, sempre no suporte do papel. Com grande liberdade de expressão, Gisela reuniu num mesmo trabalho as várias técnicas utilizadas até então. Nanquim, grafite, aquarela, guache e caneta esferográfica se uniram para a obtenção de um resultado único e surpreendente. Nada era excessivo e tudo se integrava em imagens intensamente trabalhadas e equilibradas. Já nos últimos trabalhos, feitos entre 1994 e 1996, um certo grafismo surgiu em meio aos traços e cores. Era uma escrita aparentemente automática, um texto codificado, que poderia ser interpretado como verdadeira confissão de princípios que regeram sua vida como desenhista e pintora. Parece justo afirmar que são frases de seu testamento artístico, do legado que a artista deixou. Neste livro pretendeu-se abordar o leitmotiv de todo o percurso artístico de Gisela que foi não só a melancolia de uma criatura sensível e atenta, obrigada a deixar seu país natal, mas também a descoberta de um novo mundo, conciliável com tudo o que ela acreditava ser mais importante, e que tomou novo impulso nas cores transfiguradas dos trópicos, misto de refúgio seguro e surpresa constante. De tradicional família de músicos que remonta ao século XVII, Gisela produziu obras abstratas eivadas de profundo conhecimento e sensibilidade musicais, influência presente em seus trabalhos de maneira assertiva e definitiva. Assim, o título deste livro remete intencionalmente ao de outro, idealizado por Gisela e publicado em 1986, numa clara homenagem à outra sua forte paixão, além da pintura: a música. Naquela ocasião, a artista organizou suas Canções sem palavras, compilação de imagens com o mesmo espírito das pequenas peças da obra homônima de Mendelssohn. Esclarecedor é o texto inédito de Alvaro Machado, publicado neste volume, sobre a importância absoluta da música na obra de Eichbaum. Segundo Alberto Teixeira, “uma das notas mais características dessa imagística é a poética da luz, uma luz própria e inconfundível, construída com cromatismos e traçados sutis, em efeitos meridianos e noturnais, mas predominantemente de média luz e crepusculares, em paisagens sonhadas ou lembradas, simbólicas e evocativas de situações e vivências múltiplas, ou em abstrações que são como música de singular harmonia”. Em geral de pequenas dimensões, os trabalhos de Gisela Eichbaum foram a prova das suas vastas dimensões criadoras que consolidaram, dessa forma, um duradouro projeto artístico.

 

Antonio Carlos Suster Abdalla

Absoluta coerência

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